O sol mergulha no Guaíba. A escuridão vai tomando conta da cidade. Pelas ruas e avenidas a hora do rush; pessoas correndo, como que fugindo da Hora do Brasil. De algum lugar em meio a multidão ouve-se uma canção.
Da janela de um quarto de hotel assisto o corre-corre do povo. Amanhã será um novo dia. Um novo ano. Um novo recomeço.
Na rua ouço o rádio de um táxi; pastores exorcizando e ditadores sendo depostos. No quarto quase escuro, apenas a luz da televisão, fazendo com que as paredes mudem de cor a cada cena.
O vento sopra; canta uma canção. Sento em frente ao aparelho televisor. O quarto cada vez mais escuro. Passam-se horas em minutos. E lá fora o resto de dia vira noite.
Pairo novamente na janela. A cabeça nas nuvens e os pés no chão. Outro cigarro. Acho que envelheci dez anos ou mais neste último mês.
Novos pensamentos; velhos pensamentos. Vozes em minha cabeça. Um silêncio anormal para aquelas ruas. Táxis, moradores de rua.
Conto as horas que passam, na solidão das noites sem graça destes quartos de hotel.
Uma luz se apaga no prédio em frente ao meu – era a última janela iluminada. Mas nada anormal, amanhã ela vai voltar. Imagino se em alguma outra janela, outra pessoa me observa; ou se sou a última janela iluminada deste prédio.
A duras penas apago a televisão, fecho as cortinas, apago o cigarro. O quarto fica quase escuro, iluminado apenas por um tom neon da propaganda de um outro hotel em frente ao meu.
Em uma tentativa deito na cama. Noite liquefeita, tudo toma forma - tudo se transforma. Se alguém ouvisse as vozes que ouço a noite, acharia tudo que faço natural! Solidão. Ah, se soubessem o medo que sinto do escuro. Relembro cada erro, cada gesto, cada frase banal da qual já me arrependi.
Lá fora um silêncio ensurdecedor. Uma cidade que dorme, enquanto a insônia infelizmente não. Sigo deitado, olhando para o teto – amanhã estrada e uma cidade diferente. Mas as noites passarão do mesmo jeito e as estrelas estarão no mesmo lugar.
Um corpo dorme, uma mente segue acordada. Bobeiras da noite, pensando bobagens por noites inteiras. E os olhos continuam, por um tempo inestimável, apenas enxergando o vazio sem sentido de um teto. Estas são noites passadas em branco. Olho para o lado e nada vejo. Delírio, desejo, vozes e visões - frutos da imaginação.
Pesadelo. Em um curto período de sono tive medo de não acordar. Tive medo quando acordei! Tudo faz sentido agora que tudo acabou. Foi só um pesadelo.
Desisto de fingir que conseguirei dormir; lavo o rosto, abro as cortinas e empurro a janela. Acendo outro cigarro. Lá fora tudo segue igual.
O tempo passa entre um cigarro e outro. A essa hora já não passa nenhum carro por aqui, já não passa nenhum filme na TV. Pela janela vejo outras janelas acesas.
Já é quase fim de ano. Mais um pouco e mais um ano vai terminar – vai começar. E se a vida seguir nesse ritmo, ano que vêm haverá mais um louco pedindo troco nas esquinas.
Lá fora gritos, buzinas e correria; a cidade cada vez mais violenta. E isso já faz parte da rotina. Um casal discute na esquina – um rapaz fazendo de tudo por uma menina. Ele lutando por uma menina e a palestina lutando pra sobreviver. Solidão e individualismo. Agora, lá fora, o mundo todo é uma ilha... a milhas e milhas de qualquer lugar.
Revoluções, modernismo, tecnologia. Ideias tão modernas... dos mesmos homens que viveram nas cavernas. As ideias, as vozes, a indignação não cessam em minha cabeça. Vida a fora, noite adentro - a insanidade das madrugadas tomando cada vez mais conta das minhas ideias. Entre a loucura e a lucidez, entre um cigarro e outro.
Uma noite interminável numa cela escura. Eu que não sei perder, perdi o sono!
Inspirado
e baseado nas músicas de Humberto Gessinger / Engenheiros do Hawaii:
10.000 DESTINOS; A CONQUISTA DO ESPELHO; A VERDADE A VER NAVIOS;
ANDO SÓ; ANOITECEU EM PORTO ALEGRE; CANIBAL VEGETARIANO DEVORA
PLANTA CARNÍVORA; CRONICA; DESERTO FREEZER; EU QUE NÃO AMO VOCÊ;
FAZ PARTE; FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR; LONGE DEMAIS DAS
CAPITAIS; INFINITA HIGHWAY; MUROS E GRADES; NA REAL; NINGUEM=NINGUEM;
NO INVERNO FICA TARDE + CEDO; NUNCA SE SABE; O PAPA É POP; O PREÇO;
OLHOS IGUAIS AOS SEUS; OUÇA O QUE EU DIGO, NÃO OUÇA NINGUÉM;
PIANO BAR; POSE; QUARTOS DE HOTEL; REFRÃO DE BOLERO; TERRA DE
GIGANTES; VOZES.
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