25 de mai. de 2013

Anoiteceu em Porto Alegre [2/3]

   Desisto. Abandono a tortura mental do quarto; da insônia que me persegue. Coloco qualquer roupa jogada pelo chão, giro a chave e bato a porta. Desço as escadas, degrau por degrau até alcançar a rua. O casal de jovens já não está mais ali, os táxis já não passam mais por aqui e um pedinte dorme debaixo de um papelão. Não adianta mesmo ser livre, se tanta gente vive sem ter como comer. 
   Sigo sem rumos, sem barreiras ou fronteiras; na liberdade que só as madrugadas podem conceder. Não é a primeira vez que faço este trajeto, não é a primeira vez que sigo pelas ruas tarde da noite. 
   Suave é a noite, e é a noite que eu saio - pra conhecer a cidade e me perder por aí. Suave é cidade pra quem tem necessidade de se esconder. Esta cidade muito grande e ao mesmo tempo tão pequena; uma realidade por vezes tão distante do resto do país. Estamos longe demais das capitais.
   As ruas seguem sob meus pés; atravesso uma grande avenida sem sequer necessitar olhar para os lados. Ao longe alguns carros, o barulho dos freios de um ônibus, e outros seguindo seus próprios rumos. Há mais de mil destinos em cada esquina.
   Sempre me perco pelas mesmas ruas; não trago mapas, não leio as placas. Ando sem saber até quando. Não quero ter o que não tenho; só quero viver. Perder o rumo é bom - se perdido a gente encontra um sentido escondido em algum lugar.
   Subo uma longa escadaria, observo o mundo lá embaixo. Ao longe os morros iluminados. Em alguns prédios janelas ainda acesas. Desço pelo outro lado das escadas. Nas calçadas moradores das ruas - moradores da noite. 
   Pelas ruas a indiferença, a desigualdade, a fragilidade humana. E todos fingem ser cegos; assistem as cenas e fingem pena. Isso já faz parte da rotina. Não é que eu faça questão de ser feliz, só queria que parassem de morrer de fome a um palmo do meu nariz. 
   Sigo pelas ruas sem planos, sem rumos. Pelo chão resquícios de propagandas de um prazer pago. Nas paredes as marcas dos modernos homens das cavernas: pictografia, arte rupestre ou somente pichações? Placas, adesivos, outdoors.
   Muros e grades separam um mundo real de outro imaginário. Um país tão irreal e violento. O medo leva o povo a tudo - sobretudo à fantasia. E assim erguem-se muros para dar uma falsa garantia de uma morte cheia de uma vida tão vazia. 
   Ando só. Mesmo que pareçam bobagens as rotas que eu traço, tento traçar meus rumos (a esmo). Sigo sem saber aonde vou. Afinal de contas: nem sempre faço o que é melhor pra mim, mas nunca faço o que eu não tô afim de fazer. 


   Assumo o prumo de meus passos e sob meus pés muito chão faço seguir. Uma multidão logo adiante. Um rebanho de outros. Em meio a muitos, um sentimento mútuo sentido: a solidão das grandes cidades. Todo mundo é uma ilha.
   Em uma outra solidão vou seguindo meu rumo. Ando só - como um pássaro voando em bando. Em meio a uma multidão, ando só. Ruas se cruzam, bares e mais bares. Sob as mesas garrafas cheias em frente a pessoas vazias. Em uma mesa de bar uma menina aparenta estar sozinha. Parecia que era minha aquela solidão.
   Jovens espalhados pela cidade. Jovens cheios de dúvidas – com mais dúvidas que certezas. Hoje já não esquento a cabeça; durante muito tempo isso era só o que eu podia fazer. 
   Rostos felizes, cheios de falsidade; fingem uma tranquilidade e otimismo. Do mesmo lado os que querem iluminar e os que querem iludir. Jovens revolucionários querendo remar contra a corrente. Pura pose - como rasgos pré-fabricados, num “novo velho blue jeans”. Palavras que nunca são ditas e muitas vozes repetindo a mesma frase; todos revendo o que nunca foi visto e comprando os mais vendidos. Ninguém é igual à ninguém. Mas são todos iguais - e tão desiguais.
   A juventude é cheia de sonhos. É muito engraçado que todos tenham os mesmos sonhos e que o sonho nunca vire realidade. O que faz as pessoas parecerem tão iguais? O que fazem as pessoas para serem tão iguais?
   Prossigo em minha procissão. Caminho para lugar nenhum. Sigo só e não sei onde vou parar. Mas nem preciso saber para onde ir; só preciso ir. Sem motivos ou objetivos – estou vivo e isto é só.
   Pelas ruas as luzes da cidade lembravam chamas. E quando tudo se apaga, um invisível salta aos olhos. A noite revela a cidade; revela o que a claridade do dia esconde.

   Nos céus fogos. Nas ruas gritos. Meus erros me encontram – me perseguiram pela noite inteira. Me encontraram sentado na mesa de um bar. 
   O efeito de uma vazia garrafa de vinho barato e  cigarros apagados no cinzeiro. No espelho do banheiro não reconheci um rosto embrigado. Eu que um dia falei “nem pensar”, agora me arrependo. Em um erro vulgar fui sincero como não se pode ser. 

   As horas passaram. Lá no fundo o horizonte começa a mudar de cor. Em breve vai amanhecer em Porto Alegre. 



FIM PT. 2/3

PARTE 1 / PARTE 3

Inspirado e baseado nas músicas de Humberto Gessinger / Engenheiros do Hawaii: 10.000 DESTINOS; A CONQUISTA DO ESPELHO; A VERDADE A VER NAVIOS; ANDO SÓ; ANOITECEU EM PORTO ALEGRE; CANIBAL VEGETARIANO DEVORA PLANTA CARNÍVORA; CRONICA; DESERTO FREEZER; EU QUE NÃO AMO VOCÊ; FAZ PARTE; FILMES DE GUERRA, CANÇÕES DE AMOR; LONGE DEMAIS DAS CAPITAIS; INFINITA HIGHWAY; MUROS E GRADES; NA REAL; NINGUEM=NINGUEM; NO INVERNO FICA TARDE + CEDO; NUNCA SE SABE; O PAPA É POP; O PREÇO; OLHOS IGUAIS AOS SEUS; OUÇA O QUE EU DIGO, NÃO OUÇA NINGUÉM; PIANO BAR; POSE; QUARTOS DE HOTEL; REFRÃO DE BOLERO; TERRA DE GIGANTES; VOZES.

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Crônicas de Um / 1 Qualquer: crônicas,contos,textos