8 de jun. de 2018

A navalha

   Largou a navalha sobre a bancada. O movimento estava fraco nos últimos dias. Atualmente eram poucos homens que procuravam os tradicionais barbeiros para aparar o cabelo e afeitar a barba. "Deve ser culpa dos shoppings" - pensava.
   Diariamente a barbearia era aberta. Pontualmente, as 8:30. O jornal do dia, comprado na banca próxima, era depositado em uma das tradicionais cadeiras; a Playboy do mês, sobre outra; o branco jaleco era vestido. E a navalha era afiada - sem pressa, com esmero.
   Haviam dias em que a navalha sequer era utilizada, independente disto, no fim do dia era guardada na gaveta e afiada novamente no dia seguinte - sendo mais uma vez colocada sobre a bancada.
   O calor dos últimos dias devia estar espantando os clientes. Assim como o frio de alguns meses atrás.
   "E o jogo de ontem?", "Será que chove?!", "Roubalheira nessa política!" - citavam os passantes e os poucos cativos clientes.
   O tempo passava. As pessoas passavam. O chão era varrido, recolhendo os fios caídos. O sol baixava. E a navalha era limpa e guardada na gaveta.
   No dia seguinte a barbearia era aberta. 8:30. Jornal do dia sobre uma cadeira. Playboy sobre outra. Jaleco Branco. E a navalha era retirada da gaveta e afiada - sem pressa, com muito esmero.
      "E o jogo?", "Chove?!", "Roubalheira!".

   Com o sol baixando, o chão era varrido. A navalha pairava sobre a bancada. Logo voltaria para a gaveta, até a próxima manhã.
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17 de mai. de 2018

O livreiro [pt.2]

Em meio a confusão do entorno do Mercado Público, Renato tentava atravessar a rua, desviando da multidão que saía do trem e dos descarregamentos de produtos do Mercado.
O dia amanheceu comum - assim, sem definição. Renato parou em uma cafeteria e pegou um café para viagem. Seguia seu rumo entre goles de cafeína.
Lembrou-se da família Joad - de As Vinhas da Ira - e seu apreço por um simples cafezinho durante sua estrada. Lembrou-se do livreiro Antônio.
Subindo pela Rua da Ladeira, resolveu dar um pulo rápido no Sebo, como quem não quer nada.
Fingiu observar os livros da vitrine e viu o livreiro entre as estantes.
Subiu o degrau e o piso rangeu sob seus pé ao primeiro passo. Com isso Antônio virou a cabeça e ficou olhando Renato. Não disse nada por alguns segundos; disse um "Bom dia" por fim.
Renato olhava os livros nas estantes e pilhas, sem buscar nada em específico. Resolveu testar o velho: abriu sua mochila, revirou entre os papéis e encontrou um pequeno livro que estava lendo. Buscou o livreiro e entregou-lhe o livro, perguntando quanto ele pagaria na compra.
Antônio segurou o livro, girou-o nas mãos, passou os dedos pela lombada, sentiu o peso e folheou rapidamente o mesmo. Por fim disse sem introduções:
- "Seis reais".
- Mas este livro novo custa quatro vezes mais. - disse Renato.
Antônio coçou o queixo e respirou forte.
- É um best-seller atual. Um autor premiado. - argumentou Renato.
- Oito reais, então. Não pago mais que isso. - disse Antônio, dando as costas.
- Ok. Vou pensar no caso. - respondeu Renato, guardando novamente o livro na mochila.
Fingiu olhar mais alguns livros em uma prateleira.
- O senhor tens algum livro de romance-policial, tipo o Dan Brow.
Antônio fez cara de que não entendeu ou não reconheceu o nome do autor.
- Garoto... se queres um livro policial leia Agatha Christie. Ela sim é uma boa autora.
Renato já havia lido, mas acabou levando para casa um exemplar de "O caso dos dez negrinhos". Quando saía pela porta, outro jovem perguntava ao livreiro por algum outro livro que estava na lista dos mais vendidos; Antônio não o possuía.
Parecia que aquele Sebo havia parado no tempo, lá pelos anos 1970.
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